Cortes do governo federal podem inviabilizar agência reguladora da mineração e aumentar o risco de tragédias no Brasil

Mais uma drástica redução no orçamento da Agência Nacional de Mineração (ANM) pode levar o governo a descumprir acordo assinado com MPF depois da tragédia de Brumadinho; autoridades do MPF, Câmara dos Deputados, AMIG e Associação Contas Abertas avaliam a gravidade do assunto


A tragédia de Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019, ceifou 259 vidas, deixou 11 desaparecidos até agora, causou um estrago monumental às vidas das famílias, ao meio ambiente e a economia do estado e dos municípios. Ainda assim, o governo federal parece não ter aprendido a lição sobre a importância de manter bem estruturada a Agência Nacional de Mineração (ANM) com aportes imprescindíveis para que o órgão possa investir em pessoal, equipamentos e tecnologias para realizar a fiscalização de barragens e da atividade minerária no país.

De acordo com a Associação dos Municípios Mineradores de Minas Gerais e do Brasil (AMIG), o corte no orçamento da ANM previsto no PLOA 2021, além de ferir a nova Lei dos Royalties do Minério de 2017 — por admitir contingenciamento dos 7% de CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral) que deveriam ser destinados à ANM–, coloca em risco a vida de milhares de pessoas que ficam sujeitas aos riscos da mineração sem fiscalização.

Em 2019, mesmo com todos os impactos da tragédia de Brumadinho, foram arrecadados R$ 4,5 bilhões com a CFEM e, desse montante, deveriam ser repassados R$ 315,2 milhões para a ANM no exercício de 2020. No entanto, apenas R$ 67 milhões foram aplicados no órgão neste ano, ou seja, 1,5% do royalty de minério arrecadado, quando o correto seria 7%. Para 2021, a proposta, conforme sinalizada pelo governo federal, é que orçamento da ANM seja de R$ 61 milhões, o que representa mais uma redução de 9,05% do valor já insuficiente.

De acordo com o consultor de Relações Institucionais da AMIG, Waldir Salvador, essa atitude do governo federal representa mais um corte grave em um orçamento que já era muito magro para a ANM. “Desse jeito, a agência praticamente não vai existir a partir do próximo ano”, alerta. “O governo está propiciando os maiores e os piores riscos ao país, porque não tem dado a devida importância ao tema.”

Em caso de uma tragédia, segundo explica Waldir Salvador, as cidades mineradoras serão muito prejudicadas, porque, ao lado das vítimas, sofrem diretamente os impactos da omissão do governo federal. Ele ressalta que “a administração pública não é como a iniciativa privada, que consegue se reerguer rapidamente e retomar seu valor de mercado depois de uma avalanche de lama”.

Na visão da AMIG, a ANM não funciona apenas em função de fiscalização de barragens, mas a falta de investimento por parte do governo federal no órgão impossibilita a plena operação da agência e compromete sua rapidez. Essa morosidade resulta em prejuízos econômicos para o Brasil. "Quanto menos estrutura e condições a ANM tiver para por exemplo fomentar a mineração através da autorização de processos de pesquisas e lavras, pior para o país. Isso compromete a agilidade da agência também, na fiscalização da CFEM, que continua com elevado índice de sonegação, e na fiscalização nas lavras clandestinas”, afirma Waldir Salvador. A AMIG chama atenção também para a falta de reposição de pessoal na agência, uma vez que “duzentos” funcionários se aposentaram nos últimos dois anos. “Não há estímulo para se continuar trabalhando na ANM!”.



AMIG faz alertas recorrentes às autoridades

Depois do acidente ocorrido em Brumadinho, foi ajuizada uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal de Minas Gerais para que a ANM fosse obrigada a inspecionar todas as barragens de mineração do país consideradas inseguras ou com segurança inconclusiva. Pelos termos assinados em outubro de 2019, o governo deveria aumentar as verbas para a fiscalização de barragens entre os anos de 2019 e 2021, sem prejudicar o orçamento da agência. No entanto, o bloqueio de gastos determinado pelo governo deve impedir que a ANM atenda ao pedido do MPF de Minas Gerais.

Essa informação levou a AMIG a agir mais uma vez para alertar as autoridades.  “Ao cortar o orçamento da agência, o Brasil demonstra claramente que não aprendeu com os maiores desastres já vivenciados na história da mineração e, assim como fez por décadas, relega mais uma vez a um plano inferior o segmento econômico que, mesmo enfraquecido e abandonado, representa aproximadamente 10% do PIB nacional”, afirma a AMIG em documento encaminhado, no dia 31 de agosto, ao presidente e ao vice-presidente da República; presidentes da Câmara dos Deputados e Senado Federal; aos ministros da Economia e de Minas e Energia; à Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral; e aos deputados federais da Comissão de Minas e Energia.

“Para que a ANM tenha estrutura, meios e recursos materiais, humanos e financeiros adequados para a realização das tarefas que lhe competem, é necessário que a Agência tenha para o exercício de 2021 um orçamento de, no mínimo, R$ 155,9 milhões, ou seja, uma expansão orçamentária na ordem de R$ 94 milhões do valor proposto no Projeto de Lei”, afirma o presidente da AMIG, Vitor Penido, que assina o documento.

Vale pontuar que, de acordo com dados da ANM, existem 841 barragens de mineração no país, desse montante, apenas 441 estão inseridas no Plano Nacional de Segurança de Barragens (PNSB). Atualmente, a agência conta apenas com 30 fiscais para atuar em todo território brasileiro. A falta de pessoal como dificultador para operacionalização da agência é sinalizado no documento.

“Existe um enorme déficit no número de pessoal que se torna ainda mais absurdo quando comparado com os números do passado. A ANM possui atualmente 750 servidores para atender todo o Brasil, sendo que, desse total, até o final deste ano, 100 servidores estarão aptos a se aposentar. Em 1999, o extinto DNPM tinha um total de 850 servidores. Isso significa que a força de trabalho da Agência nos dias de hoje é menor do que há mais de duas décadas, fato que comprova o sucateamento do órgão de regulação e fiscalização do segmento minerário brasileiro”.

A AMIG alerta também para os riscos aos quais está sujeita a atividade de mineração no país, caso o orçamento da agência permaneça sendo prejudicado com os cortes. Entre os argumentos estão “perigos iminentes de novas catástrofes socioambientais; ausência de fiscalização da atividade de mineração no país; permanência da cultura de sonegação e evasão fiscal, já histórica e explícita no segmento; e exploração predatória, clandestina e desordenada”.

Ano passado, a AMIG procurou dialogar com a Executivo Federal, por intermédio do Ministério de Minas e Energia e do Ministério da Casa Civil, a fim de que as pastas pudessem interceder junto ao presidente da República, mas não obteve qualquer tipo de resposta. Antes mesmo da PLOA 2021 sair do papel, a AMIG protocolou, em maio deste ano, representação junto ao MPF solicitando que o órgão tomasse as providências necessárias para que o orçamento da agência não fosse mais contingenciado pelo governo federal e que se fizesse cumprir a nova lei dos royalties da mineração, que garante 7% de CFEM ao órgão.

A AMIG reportou que o bloqueio é uma prática recorrente pelos governos e sinalizou como a falta de recursos inviabiliza o trabalho da agência para a realização de fiscalizações de barragem e de sonegação fiscal. Na representação, a AMIG citou trechos de relatórios, processos e petições do Tribunal de Contas da União, Controladoria Geral da União, Ministério Público Federal que apontam a situação crítica do DNPM e ANM quando das tragédias de Mariana e Brumadinho.

Além disso, o presidente da AMIG, Vitor Penido, lista no texto uma série de ações que a entidade fez nos últimos anos em defesa de uma mineração mais responsável e a favor da sociedade brasileira, como a realização de congressos, articulação para elaboração e aprovação de projetos de lei, ofícios encaminhados a ministros de Estado e parlamentares, e solicitações de reuniões com autoridades do Planalto. Em nenhuma delas, não houve qualquer resposta ou interesse das autoridades em receber representantes da entidade.

“Essa é a fotografia da ANM: uma agência neófita, com responsabilidade de fazer a gestão de uma das maiores riquezas do país (recursos minerais), que tem que lidar com as empresas que estão entre os maiores conglomerados privados do mundo (setor produtivo da mineração), sem nenhum tipo de respaldo e apoio do próprio Executivo Federal”, escreve Penido.

A representação foi recebida no dia 6 de maio deste ano pelo gabinete da procuradora da República Anna Carolina Resende Maia Garcia, do MPF do Distrito Federal. Até o momento, ela não comentou sobre a representação da AMIG e o ofício da ANM ao Ministério da Economia.

Procurador do MPF comenta corte no orçamento da ANM

Coordenador da força-tarefa de Brumadinho e Mariana no Ministério Público Federal (MPF), o procurador da República em Minas Gerais José Adércio Leite Sampaio se pronunciou sobre o fato de que a redução no orçamento da ANM previsto para 2021 pode levar o governo federal a quebrar o acordo com o MPF. Ele afirma que, ao descumprir o acordo, o governo estará “lavando suas mãos” para a situação precária das barragens de mineração.

“A pandemia do novo coronavírus não pode ser um fator para o descumprimento do acordo, tendo em vista que temos uma ‘pandemia’ de barragens com sérios problemas em Minas Gerais e no Brasil por falta de fiscalização da União”, alerta. “O acordo possui valores mínimos para ganhos sociais enormes.”

Segundo o procurador, diante do tamanho do orçamento da União, os valores firmados na ACP são irrisórios e, por isso, não justificaria o governo quebrar os termos assinados com o MPF. Caso a ANM sofra cortes no orçamento que venham a ferir o acordo, o procurador disse que o MPF não ficará parado. “Não podemos deixar de agir: vamos pedir para que o Judiciário determine o repasse dos valores. Se descumprirem, pediremos o bloqueio de recursos”, ressalta. A fala veio depois da repercussão do ofício da ANM encaminhado aos ministérios da Economia e de Minas e Energia, no qual a agência sinaliza que o orçamento previsto para 2021 é 9,05% menor que o valor referente ao ano de 2020.


Ministério da Economia foi alertado pela ANM

No documento, a ANM lembra que, como compromisso firmado com os procuradores do MPF, o governo deverá alocar as dotações orçamentárias necessárias ao atendimento das despesas relativas à gestão de barragem. Ficou estipulado também que a agência terá, em 2021, R$ 61,4 milhões para os gastos discricionários, referentes a investimentos e execução de projetos e programas. O presidente da agência, Victor Hugo Bicca, alerta que o corte e a maneira como a equipe econômica do governo calculou como o orçamento deve ser gasto podem inviabilizar as atividades da ANM no próximo ano.

A razão é uma só: o governo quer que a agência use o orçamento reduzido para cumprir as obrigações firmadas junto ao MPF, em vez de alocar mais recursos para trabalhos de fiscalização de barragens. "A assinatura do acordo da ACP de Brumadinho trata de compromisso assumido pela União de prover os recursos necessários para estruturar a área de fiscalização de barragens e, assim, melhorar a segurança da atividade de mineração brasileira. Para tanto, foi acordado que as dotações seriam adicionais ao orçamento ordinário da ANM", diz, no documento, o presidente da agência.

Diante da redução orçamentária para o ano de 2021, Victor Hugo Bicca escreveu que precisará informar formalmente o MPF e ao juízo da ação sobre o corte e a realocação de recursos, tendo em vista que os valores estipulados comprometem a atuação da agência. Por fim, solicita que o orçamento passe a ser de R$ 155,9 milhões para despesas discricionárias.


PL que põe fim a bloqueio de repasses de CFEM à ANM tramita na Câmara

Quem também se pronunciou sobre o corte no orçamento na ANM previsto na PLO 2021 foi o deputado federal Joaquim Passarinho (PSD-PA). O parlamentar é autor do Projeto de Lei 4054/19, que proíbe que os recursos dos royalties de minério destinados à ANM sejam contingenciados pelo governo. Os 7% de arrecadação com os royalties deveriam ser repassados à ANM, mas, na prática, isso não ocorre.

Passarinho disse que essa discussão não existiria se o projeto de lei fosse aprovado. O parlamentar afirmou que não concorda com o corte de 9%, mas ressaltou que é preciso saber onde os valores serão alocados. Pontuou ainda que o mais importante é que os recursos estejam na ponta para garantir, por exemplo, as operações da ANM em fiscalização de barragem e CFEM. “Agência, para mim, não tem que existir apenas para pagar salários dos servidores e verbas discricionárias. Temos que garantir a operacionalização”, criticou. “E os 7% da CFEM garantem a operacionalização da ANM.”

O deputado garantiu que vai se reunir com as lideranças das bancadas de Minas Gerais e Pará, os maiores estados mineradores do Brasil, para tentar votar o PL 4054/2019 ainda neste ano. Conforme afirmou, há um acordo entre os líderes da Casa para que as medidas provisórias e projetos de lei sobre a pandemia sejam votados e que, ainda assim, outras matérias estão indo a plenário. “Esse é um projeto de lei muito importante e, mesmo diante da pandemia, tem de ser votado”, afirmou.


Associação Contas Abertas avalia corte na ANM

O economista Gil Castelo Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas, reconhece que as reivindicações da ANM e da AMIG têm fundamentação importante e relevante para que não haja redução no orçamento da ANM para 2021 em relação à dotação do projeto de lei de 2020. “Até porque, todos os brasileiros viram o que aconteceu em Brumadinho e, evidentemente, se aconteceu o que aconteceu com os recursos, que já eram escassos naquela ocasião, o que dirá com recursos ainda menores? O que poderá acontecer com outras barragens ou com o trabalho da agência?”, indagou. “Isso evidentemente terá que ser analisado e é um questionamento sério”, pontuou.

O especialista em finanças públicas observou ainda que o contexto orçamentário de 2021, de maneira geral, é extremamente difícil. Segundo ele, o país vai encerrar o ano de 2020 com endividamento de aproximadamente 100% do PIB e um déficit fiscal que a área econômica do governo admite ser de quase R$ 800 bilhões, podendo crescer para algo próximo de R$ 900 bilhões, “tendo em vista a necessidade de prolongamento de alguns auxílios e outras medidas de natureza social e de enfrentamento a pandemia”, anotou. “Então, a corrida pelos scassos recursos na Esplanada será, evidentemente, enorme. Vários setores estão reivindicando dotações maiores do que essas que foram colocadas no referencial monetário”, destacou.

Para o economista, os próximos quatro meses posteriores à entrega do Projeto de Lei do Orçamento, ou seja, de setembro a dezembro, essa questão vai ser amplamente discutida no Congresso Nacional. “As prioridades terão de ser analisadas para que se consiga prover, com mínimos recursos, essas áreas, cujo funcionamento é essencial e que pode estar ligado, inclusive, a perdas de vidas como nós vimos no caso de Brumadinho”, alertou.